O silencio a acordou. Glória acostumara, com muito esforço, os ouvidos aquele zumbido constante de turbina e de repente não ouvia mais nada. O silêncio só significava uma coisa: aquela merda de avião estava caindo.
Um arrepio lhe subiu a espinha. Imediatamente viu surgir os óculos fundo de garrafa de Tia Hercília, com seus imensos olhos verdes cravados nos dela. Segurando firme a palma de sua mão direita, a velha dizia “sinto muito querida, você corre grande perigo”.
Glória tinha apenas oito anos, mas desse dia em diante viveu como se estivesse andando à beira de um abismo. Não adiantou a família explicar que Tia Hercília era paciente do hospital psiquiátrico Vera Cruz, nem que “essa coisa de ler o futuro” não passava de tolice. Nada tirava da cabeça dela a previsão da tia. Por isso até hoje, vinte anos depois, não havia feito nada que pudesse colocar voluntariamente sua vida em risco.
Mas aí veio o telefonema, o pedido urgente de uma visita à Porto Alegre que não poderia ser adiada – mesmo diante da sua enorme insistência –, era caso de vida ou morte. Então lá estava ela sentada naquela poltrona apertada, o suor escorrendo pela testa, as mãos escorregando do assento e um frio na barriga que nunca havia sentido antes. “Deve ser uma espécie de recorde morrer na primeira viagem de avião”, pensou, “com baixíssima estatística”. Não se lembrou de ter lido algum dado semelhante na busca que fizera por ‘desastres+aéreos+estatística’ durante o trajeto de casa até o aeroporto. Fixou apenas que “a chance de morrer em um desastre aéreo é 1 para 11 milhões”. Entraria, de fato, para as estatísticas.
Se remexeu na poltrona e olhou ao redor, a cabine estava escura - exceto pelas luzes do corredor -, e todos dormiam tranquilamente. Até o pirralho do seu lado - que havia chorado por 40 minutos seguidos-, estava entregue a um sono profundo com os pés sujando sua calça jeans branca. “Odeio crianças”, resmungou para si mesma, porém sem mover os pés do moleque. A verdade é que agora, prestes a morrer, arriscaria dizer que queria ter um filho. Poderia levá-lo para passar as férias em Angra, onde ficariam numa casa com jardim de orquídeas e uma piscina. Rasa. Os riscos de afogamento eram menores em piscinas rasas. Cuidaria das plantas enquanto o marido levaria o filho à praia. Por um momento se perdeu na fantasia e esqueceu onde estava, mas durou pouco, foi logo sugada de volta para realidade por um sinal sonoro. Acontece não havia marido, nem praia, nem filho. E não haveria nunca, porque aquele maldito avião estava prestes a cair. O aviso de apertar os cintos acendeu sobre sua cabeça. “Eu sabia que isso ia acontecer, nunca devia ter colocado meus pés aqui”.
As luzes da cabine acenderam. “Senhoras e senhores”, disse a voz da aeromoça, “pai nosso que estás no céu...”, começou Glória de olhos fechados, agarrada na perna da criança, “preparar para aterrissagem”, concluiu a aeromoça.
Glória interrompeu a oração e olhou ao redor desconfiada, ninguém estava em pânico. Os comissários de bordo passaram sorridentes checando as poltronas. Notou que o barulho da turbina havia voltado. “Essa merda não vai cair, afinal”.
Foi um alívio chegar ao solo. Um enorme alívio, como há muito tempo não sentia. Gloria colocou suas malas no carrinho e seguiu rumo ao ponto de táxi do lado de fora do aeroporto. Andava livre e despreocupada pela primeira vez na vida, e foi pela primeira vez também não que olhou o semáforo fechar para pedestre. Quando o carro surgiu veloz à sua frente era tarde demais para voltar a se preocupar com o perigo. Virara, enfim, estatística.
Thami Polensan
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