Já era tarde da noite quando o último guarda fechou com chave os portões do corredor. Ao fundo, no canto esquerdo, a respiração sobressaltada da cela 42 começava a irritar os demais. ‘Cale a boca, seu verme’, gritou um, ‘se for para morrer, que morra quieto’, disse outro.
O silêncio foi
chegando, as luzes se apagando uma a uma. No fim do ritual, as oito celas
daquele corredor encontravam-se escuras e se via apenas a luz da lua – azul e
prateada – iluminando o chão de pedra. O lugar todo era feito de pedra, com
arcos redondos nas portas das celas, fugindo do aspecto reto e quadrado das
outras prisões. Mais de uma vez o prisioneiro da cela 42 desejou que o punhado
de pedra acima de sua cabeça desmoronasse sobre ele.
Quando tudo se apagou houve ainda tosses, resmungos e cusparadas. Presos
se ajeitavam, entregando-se sem resistir a mais uma noite de confinamento. Exceto um.
Havia naquele momento alguém com a cabeça fervilhando, alguém que tramava algo, alguém que respirava pesado com o coração na boca.
Havia naquele momento alguém com a cabeça fervilhando, alguém que tramava algo, alguém que respirava pesado com o coração na boca.
Sentado na cama as mãos tremiam sob seus joelhos e ele contava as pedras
da parede a sua frente para tentar se acalmar. Um. Dois. Três. Quatro. Um longo
suspiro. As pernas começaram a tremer sem controle e os pés mal tocavam no
chão. Até que se levantou.
Debaixo da cama pegou uma camiseta rasgada que fez de sacola, onde
colocou seus poucos pertences. Um livro e uma foto tão transparente que parecia
o retrato de um fantasma. Amarrou a sacola improvisada nas costas e mais
embaixo, escondido no vão do cimento, puxou um pedaço de metal entortado. Seu
coração disparou. Suas mãos tremiam tanto que quando se viu de frente para as
barras de ferro mal podia levantar os braços.
O suor escorria pela testa quando ele colocou as mãos para fora e
encaixou o metal na fechadura. Antes de tentar girar o dispositivo agradeceu
pelo preso da cela a frente ser um maldito cego inválido, uma preocupação a
menos. Sentindo o metal gelado entre os dedos ele fechou os olhos – apreensivo
- e fez força para a esquerda. Prendeu a respiração. Um clique. Tenso, parou
com medo de ter despertado alguém. Nada. As mãos suavam fazendo com que o metal
escorregasse um pouco. Continuou. Outro giro, mais um, um último clique mais
alto e a porta cedeu, se movendo levemente encostando-se à ponta de seus pés.
Aquele centímetro de portão aberto encheu o peito do homem de alegria e ele
precisou conter o grito que veio à garganta. Abriu.
Seu corpo queimava de um calor febril de ansiedade. Ele puxou lentamente
o aço que rangia e deixou de respirar de novo. A porta estava aberta a sua
frente. Todos os desgraçados dias em que esteve ali sonhou com esse momento, sabendo
que ele jamais chegaria a não ser quando fechasse os olhos. Agora lá
estava ele, prestes a sair.
Deu um passo em direção a porta e quando estava a ponto de dar o segundo
ouviu um barulho vindo do final do corredor. Um gelo lhe subiu pela espinha,
sentiu o estomago doer como se tivesse levado um soco. Paralisado, esperou pelo
guarda que lhe tiraria a vida. Era o fim. Teve vontade de chorar, iria morrer
como um cachorro velho jogado numa prisão de pedra.
Mas o guarda não veio. Tudo foi se aquietando e em pouco tempo só
conseguia ouvir o som de sua respiração ofegante. A presença do guarda o despertou
sobre o tempo. Era preciso correr, ele poderia voltar. Sem hesitar saiu da
cela, deu alguns passos e parou em um ponto iluminado pela lua no meio do
corredor. Olhou para baixo. Separou as
pernas de modo que seus dois pés ficassem ao redor da tampa redonda a sua
frente. Todo esse tempo em que planejara sua fuga, nunca tinha sido capaz de
precisar o quanto pesaria aquela tampa. Muito, provavelmente. E provavelmente
também não aguentaria levantá-la e morreria ali, com um tiro na cabeça caído no
meio do corredor.
Aquela não era uma prisão comum, aquele não era um país comum. Não havia
uma maneira comum de fugir de uma prisão de pedra no meio de um labirinto de
ruelas cheias de terras e escombros. Apodreceria ali, junto com os outros
condenados, guardas e prisioneiros.
Então a tampa
era a melhor opção, a única. Uma tentativa suicida de quem resolveu morrer
tentando.
Ele agachou e colocou os dedos no vão lateral da tampa, onde cabiam apenas
dois dedos de cada lado. Respirou fundo e fez força, muita força, ao ponto de
sentir os músculos de seus braços se esticarem. A tampa não se moveu. Ofegante,
ele a soltou.
Era tudo ou nada. Colocou novamente os dedos e usou a força das pernas,
os músculos enrijecidos pelo corpo pareciam se rasgar. A tampa se moveu, mas
tão pouco que pareceu fruto da imaginação. Ele tentou de novo, de novo, e de
novo, já ensopado de suor, entregue ao desespero de se sentir impotente. O medo
de ser descoberto fazia as lágrimas escorrerem cada vez que ele olhava para
trás, onde o guarda poderia passar novamente a qualquer momento. Qualquer
barulho vindo de outras celas era motivo para ter calafrios e ele se apressou.
Puxou com toda a força, toda raiva, todo o medo que tinha e a tampa se
levantou. Pouco, mas o suficiente para ele segurar com força e arrastar para o
lado. Sentiu os dedos escorregarem lentamente do vão, a veia do pescoço
saltava, ele tentava girar a tampa com o peso do corpo, as mãos escorregando, o
peso aumentou, os dedos escaparam e a tampa caiu.
Houve um barulho. Encarou um segundo aquele breu que o buraco revelou à sua
frente e se pôs na margem. Com um pé para dentro se inclinou para frente. ‘EI!’,
ouviu alguém dizer. Seu coração disparou ao ponto de sentir uma pontada no
peito. Com o susto se desequilibrou e caiu de lado, no piso de pedras,
encarando as barras da cela a frente. De lá a voz disse ‘Não pule’.
Ele se levantou depressa, ‘pulo ou não pulo?’, foi o pensamento que
surgiu.
O coração
começou a bater mais forte e ele fechou os olhos.
Pulo.
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