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O RATO MENOS CORAJOSO DE TODOS OS RATOS DO MUNDO

Era uma vez o rato menos corajoso de todos os ratos não corajosos que existem.

Na disputa entre ele e uma lixeira, você provavelmente apostaria na lixeira te salvar, de tão sem coragem que o rato era. Mas se apostasse assim, perderia, pois acredite se quiser: o rato menos corajoso que existe acabou salvando o mundo.
Seu nome era Allan.

Você provavelmente conhece um rato, mas duvido que conheça um rato chamado Allan. Se conhece (me perdoe por ter duvidado de você), pergunte se ele salvou o mundo alguma vez, só para ter certeza. Porque é praticamente impossível que exista outro rato chamado Allan, já que esse nome não é nem um pouco popular entre os ratos. Bom, se você conhece um rato, ele se chama Allan e salvou o mundo, pode deixar essa história de lado porque não terá nada de novo por aqui.

Agora se você só conhece ratos com outros nomes ou até conhece apenas outros bichos, do tipo cachorros, gatos e papagaios e tem interesse em saber como é que um rato sem coragem conseguiu salvar o mundo, me acompanhe por favor.

Allan era o rato errado no lugar certo, que acabou fazendo a coisa certa por fazer tudo errado.

Fisicamente não tinha nada que chamasse muita atenção. Não era daquele tipo que você se depara na rua e grita “AI MEU DEUS QUE RATO HORRENDO!”. Não.

Era só daqueles que você vê e grita “CADÊ O RATO QUE TAVA AQUI?”, porque quando a pergunta terminar ele provavelmente já terá sumido do mapa.

Ele tem mais medo de você do que você dele. Na verdade, você é apenas uma das muitas coisas das quais ele tem medo. Outras são: escadas, pirâmides, maçanetas, garrafas plásticas, garrafas de vidro, pedras cinzas, arame farpado, animais de quatro patas, de duas patas, de nenhuma pata, com asas e cascos (tartaruga e suas famílias). Ah, e queijo.

Isso  mesmo, Allan é um rato que tem medo de queijo. Daqueles grandes sem fatiar, ele tem medo que role, caia sobre ele e o esmague. Dos pedaços grandes de queijo, tem medo de comer e se engasgar. Dos pequenos, tem medo que o pedacinho minúsculo entre pelo lugar errado na hora de engolir, dando início a um terrível ataque tosse que não passaria sem um  pouco d’água, e talvez ele não consiga encontrar água a tempo e então... bem, deu para entender.

E o que ele come afinal? Você me pergunta. E eu te respondo: também não sei, porque não deu tempo de perguntar. Fato é que ele era muito magro e isso é muito importante para uma parte da história, já que por conta disso ele conseguiu se safar na hora exata e de quebra ainda salvar o mundo.

Mas chega de conversa e vamos ao que interessa. Imagine um esgoto. Você deve saber como é. Se não sabe, é assim: um lugar feito de canos, escuro e nojento, terrivelmente fedorento com uma água meio gosmenta no fundo. Isso pode soar como o último lugar no qual você gostaria de passear, mas eu te digo que é o lugar preferido de passear de um rato de esgoto. No caso é tipo a rua da casa dele, ou algo assim. Já que um cano geralmente dá em outro cano, que dá em outros canos, num cruzamento de canos e assim por diante.

Certo, agora imagine que esse esgoto fica a vários metros de distância embaixo da terra e que em cima seja uma cidade. Acredito que você saiba o que é cidade, então vamos pular essa parte.

Então, a vida dos ratos de esgoto se passa na maior parte do tempo nesses canos embaixo das cidades, e é muito comum que um rato idoso tenha passado a vida sem ter visto a luz do dia aqui em cima. Eles comem, dormem, trabalham, comemoram Natal, tudo lá embaixo mesmo.

Acontece que para alguns – como eu e acho que você – a cidade parece muito mais atraente do que o esgoto. Um desses era Allan.

Em uma quarta-feira chuvosa aqui na superfície a cidade estava especialmente confusa e barulhenta. Na rua carros buzinavam sem parar, um tentando ultrapassar o outro, mesmo com o farol fechado. Nas calçadas as pessoas se atropelavam com guarda-chuvas, pisando com pressa nas poças, jorrando água por todos os lados.

No meio da bagunça, andando de um lado para o outro, com quatro patinhas, desviando dos pés do povo, estava quem? Isso mesmo, o Fizz.

Não, não o Allan, o Fizz. (por sinal, um nome popular entre ratos). Eles são irmãos então entendo perfeitamente sua confusão. Não fosse Fizz mais gorducho até eu poderia me confundir.

Pois então, lá estava Fizz tentando desviar da confusão de pés e poças, andando rápido na beirada da rua em direção a um bueiro. Não via a hora de voltar para o esgoto, a vida aqui da superfície era difícil demais e Fizz era o tipo de cara que adorava coisas fáceis. Quando estava prestes a entrar no bueiro de casa avistou um rato distraído, com patinhas grudadas em uma vitrine, que espiava uma TV ligada dentro de uma loja. Agora sim, era ele mesmo, Allan.

TVs ligadas eram uma das poucas coisas das quais ele não tinha medo, então justamente naquela hora ele estava distraído assistindo um homem colocava e tirava um prato de uma coisa quadrada depois de apertar um botão. O homem já tinha feito isso umas três vezes, cada hora com um prato de uma coisa diferente. (Ele não sabia, mas como você já deve ter percebido, era um comercial de forno microondas.)

Quando o homem já estava prestes a colocar um prato pela quarta vez naquela geringonça Allan foi surpreendido por um berro, “EI MAGRELO”, direto na sua orelha direita. A resposta dele foi outro grito, mais alto ainda “AAAAAAAAAAAAAAAAAH”.

“Eu sabia que ia te encontrar aqui!”, disse Fizz, o que era mentira, porque tinha sido completamente por acaso. “Você já foi avisado que não querem ratos como nós andando aqui em cima. Eu vou te dedurar e você vai pra detenção, HAHAHA (risada bem maléfica), e eles vão fazer PICADINHO DE VOCÊ”. Como se vê, Fizz não era o melhor exemplo de irmão e sabia que a detenção era o ponto fraco de Allan.

A primeira e última que vez que esteve naquele lugar sobreviveu por pouco, graças à ajuda de um rato cego que sem querer abriu o portão da detenção achando que estava entrando em casa.

Então só de imaginar a possibilidade de ir parar naquele lugar de novo, Allan deu no pé. Ou melhor, nas patas, se enfiou no emaranhado de pés na calçada correndo sem rumo. Demorou um pouco, mas foi só as pessoas notarem que havia um rato solto correndo na calçada para a gritaria tomar conta do lugar.

Por um lado isso foi bom, porque abriu caminho para Allan correr já que as pessoas desviavam dele, mas por outro foi muito ruim porque serviu do mesmo jeito para Fizz.

Em uma tentativa desesperada, Allan virou com toda rapidez para a esquerda, fez uma curva fechada desviando de um poste e se escondeu ao lado de três degraus da entrada de um prédio enorme. Ofegante, se encolheu e segundos depois viu Fizz passar direto, seguindo reto. Ufa.

Achando que o caminho estava finalmente livre, botou duas patinhas para fora do esconderijo e já estava virando de costas quando de repente: “TE PEGUEI!”, gritou Fizz tentando mordiscar o rabo dele. Em um movimento incrivelmente ligeiro, Allan tirou o rabo antes que os dentes do irmão acabassem com ele, saiu em disparada e entrou na primeira rachadura de prédio que viu pela frente. Magrinho, conseguiu passar em um lugar pelo qual o irmão ficou entalado pela metade.

“Você vai ver só quando eu te pegar!”, ouviu Fizz dizer cheio de raiva.

Ainda tremendo, Allan se afastou dele e atravessou o vão escuro da parede saindo do outro lado em um cômodo mal iluminado e vazio. Ao redor só se via de prateleiras abarrotadas de livros.

Dentro desse lugar, conhecido por nós como biblioteca, Allan podia respirar aliviado.

Pelo menos, era o que ele pensava.

Mas é claro que os problemas estavam apenas começando.



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